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  • Foto do escritorDaniel Marcondes

Recomeços

Não tinha me dado conta ainda, mas pelo crepitar do fogo, somado ao que ouvi da conversa entre os bombeiros depois, o incêndio só seria extinto mesmo na manhã do dia seguinte.

Com o incêndio, praticamente todo material reciclável armazenado na cooperativa foi consumido pelo fogo. Dos cinco galpões, apenas um se salvou. © Daniel Marcondes

Voltava de ônibus para casa depois de mais um extenso dia de aula na faculdade. Sentava mais atrás, ao lado de um amigo que conhecia desde o ensino médio. Conversávamos despretensiosamente, como fazíamos sempre que nos encontrávamos. Tudo certo, até que aquilo apareceu. No monitor de televisão usado para publicidade, vez ou outra uma notícia também tinha vez. E foi então que a manchete chamou a atenção: “Incêndio destrói Cootacar”.


O texto associado com uma imagem aérea de tudo sendo consumido pelas chamas insaciáveis do fogo cada vez mais forte que se alastrava por aquele complexo de barracões foi muito impactante. Eu sabia a história das pessoas que dependiam daquele lugar, das famílias que tinham como único ganha pão a renda oriunda dos recicláveis. Era desolador saber que elas não poderiam contar mais sequer com o próprio trabalho.


Aquela imagem não saia de minha mente. Por mais que eu tentasse me desvencilhar, espairecer ou pensar em outra coisa, ela insistia em ficar ali no segundo plano de minha cabeça. Não tive outra opção senão chegar em casa, pegar o equipamento fotográfico e ir até lá. Queria ver com os próprios olhos como estava o lugar. Queria exercer o protagonismo que o jornalismo tanto cativa na gente e mostrar que posso fazer a diferença numa sociedade permeada por pseudo-comunicadores.


No caminho, pensava. Pensava na vida. Pensava no serviço. Pensava no que eu tinha feito até ali. Chegava à conclusão de que talvez eu não tivesse sido uma pessoa tão presente e determinante em minha vida. Um homem normal, envolto pelo mar de pragmatismo de uma existência comum. Por mais que tentasse, parecia ver em meu passado as sombras dos medos. Medo de errar. Medo de amar. Medo da desaprovação. Medo... foi então que decidi deixar o acelerador falar mais alto. Pisei até o fundo no pedal da direita e fui o mais rápido possível rumo ao destino incerto da mudança.


Ao chegar lá, parei o carro numa rua lateral, preparei todo o equipamento para as fotos e fui em direção à cooperativa sem saber o que aconteceria a partir dali. Eu poderia ser barrado. Poderia nem me darem ouvidos por ser “apenas” um estudante de jornalismo. Poderia morrer... então o presente entrou em cena e tudo aquilo que eu temia foi dissipado quando vi o barracão irreconhecível sem nenhum isolamento, rodeado apenas por quatro bombeiros que faziam o combate ao incêndio.


A escuridão da madrugada imperava, mas o fogo insistia contrastar com toda a luz que fazia emanar daquele lugar. Ver o portão que dava acesso a um dos barracões aberto, foi como ter em minha frente a janela do inferno. Tudo lá dentro estava envolto pelas labaredas e a fumaça densa que era gerada tornava o campo de visão muito pequeno dentro do galpão. Fotografei.


Não tinha me dado conta ainda, mas pelo crepitar do fogo, somado ao que ouvi da conversa entre os bombeiros depois, o incêndio só seria extinto mesmo na manhã do dia seguinte. Cerca de oito caminhões tanque tinham sido usados até então e nada do fogo perder força. Aquela já era a segunda equipe da corporação no combate às chamas. Agiam da maneira como aprenderam na formação. Faziam tudo da melhor maneira, mas o pragmatismo imperava. Era “só” mais um incêndio para ele afinal. Foi então que eu vi aquele senhor de vestes simples com uma lanterna na mão.


O silêncio no olhar do coletor dizia tudo sem falar uma só palavra. Ele olhava em frente, no rumo do barracão que era o seu ganha pão. O lugar era consumido pelas chamas. Trabalhava ali há alguns anos e, de frente para aquele lugar de 3600 m², via todo um esforço de mais de 20 anos da cooperativa morrendo bem ali, em sua frente. Sentia a impotência permear seus poros e a única coisa que conseguia fazer era se abster do falar. Percebia que perdia ali um ente querido.


A Cootacar para ele não era um lugar comum, significava a oportunidade de vida digna. Suporte de tantos momentos bons e outros nem tanto. Junto com seus 70 colegas, dava novo significado para boa parte do material reciclável da cidade de Cascavel. Era lá também que ele tinha o café da manhã, o almoço e um lanche da tarde. Era de lá que conseguia boa parte da roupa que tinha, de doações. Era de lá que tirava seu sustento... E agora? Nem mesmo ele sabia dizer. Só olhava silenciosamente para o nada. O nada ao que o fogo reduziu a cooperativa.


Ele sim percebia o real impacto daquele incêndio. Parecia envolto por uma mística de contemplação em que as palavras não eram necessárias. Às vezes elas só atrapalham. Nesse momento percebi que meu trabalho já estava feito. Sai dali com algo matutando na cabeça. Recomeçar é a resposta.

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