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  • Foto do escritorDaniel Marcondes

A estrada do seu Zé

Atualizado: 29 de nov. de 2019

Um senhor de 63 anos que trabalha como segurança e carrega consigo uma trajetória que faz nos faz refletir: damos o devido valor às coisas simples à nossa volta?

Lá estava ele ao lado daquela que poderia ser sua esposa, bem no meio de uma das quadras da hoje renovada Av. Tito Muffato. © Daniel Marcondes

Rua bloqueada. Manifestação? Não. Acidente? Também não. Algum infeliz parado em fila dupla impedido o fluxo do trânsito? Pior ainda. Aquela quadra, na esquina da faculdade, no caminho da vida, estava fechada por outro motivo. Ela carregava em seu seio a felicidade da renovação, da esperança. Abrigava humildemente em seu pavimento as máquinas responsáveis pelas obras que finalmente deram o ar da graça em suas curvas. Nem parecia mais a mesma rua de antes. Quem te viu e quem te vê, “Tito Buraco”.


O dia já estava no fim. Tudo estava parado naquele local. Era quase nove da noite e a escuridão tomava conta da cidade. A penumbra era maximizada pela ausência de iluminação pública naquela quadra. As máquinas que faziam a revitalização daquela rua estavam lá solitárias, como se tivessem o merecido descanso depois de um extenso dia de trabalho. Enxergar um palmo a frente dos olhos era uma tarefa árdua. A noite só era cortada esporadicamente pelos fachos dos faróis dos automóveis que circulavam pela via em reforma. Eram como relâmpagos que iluminavam de tempos em tempos uma fria noite chuvosa.


Asfalto? Não mais existia. Fora retirado naquele trecho como em muitas outras partes daquela antiga rua. O pavimento fora totalmente reconstruído. No momento ainda não estava pronto. Apenas em pedra bruta e compactada, a rua tinha tudo para ser muito melhor do que já fora algum dia. Havia mais de vinte anos que os moradores aguardavam a tão sonhada reforma e ela finalmente saíra. Foram mais de 4 milhões de reais investidos na obra que começou no dia 29 de janeiro e tinha prazo de 300 dias para conclusão. O transtorno era inevitável, mas é como diz o ditado: “a tempestade antes da bonança”.


As obras chamavam a atenção de quem passava diariamente indo à faculdade. Especialmente de um estudante de jornalismo do 4º semestre. Ele via a estética fotográfica proporcionada por aquela reforma improvável como um pai vislumbra no filho a oportunidade de deixar seu legado.


A chuva havia dado trégua naquela semana encharcada e o rapaz criava coragem para sair fotografar no intervalo de suas aulas. Último dia de aula da semana e faltava-lhe audácia. Não estava acreditando em si. Sentia que seria julgado por pegar a câmera e a teleobjetiva e sair fotografar em frente ao seu local de estudo. Como se fosse ser taxado de bobo novamente em sua vida. Teve medo. Medo de fracassar. Medo de ser julgado. Teve medo do medo.


Sua vida era cheia de fracassos e incertezas. Naquele dia mesmo levara mais um baque: a pauta de sua reportagem caíra como um castelo de cartas desmorona com um sopro. Isso nunca havia acontecido com ele. Estava desesperado e sequer sabia o que fazer. Só conseguia pensar no olhar de reprovação da professora quando chegasse no dia da entrega e tivesse apenas um papel em branco nas mãos. Seria um fracassado.


Com as incertezas naturais de um sujeito pós-moderno, ele saiu à rua. Resolveu encarar a si mesmo e espairecer fotografando. Caminhara lentamente para a frente da faculdade onde estudava para iniciar seu trabalho. Usava a técnica da fotografia de longa exposição, como um filho que finalmente conseguia entender o tão famoso ditado do “dar tempo ao tempo”. Só com aquele método é que conseguiria capturar os detalhes dispostos por aquela rua mal iluminada.


Fotografava sentido BR-277, encima do meio fio, quando resolveu apontar a teleobjetiva na direção oposta. Caminhou em direção à rotatória que um dia existira na esquina daquela faculdade (uma lembrança de uma vida passada, a marca de uma ferida que insistia em arder mesmo depois de ter sido curada pela inovação do progresso), então se deparara com aquilo. Aquela quadra bloqueada pelas máquinas na pista e por avisos (e cones) chamou sua atenção.


Sim, essa é a rua do início desse texto. Mas o que ela tinha de tão especial afinal de contas? Não sei. Para variar não sabia. Pensava consigo que simbolizava a dualidade da vida: enquanto as máquinas abriam caminho para uma nova perspectiva, velhos problemas, hábitos já internalizados, insistiam em obscurecer a nossa trajetória. Mas afinal de contas eram só máquinas paradas no meio de uma quadra interditada em um local escuro. Era mesmo só isso, até que ele apareceu.


Aquele cidadão surgido do meio da escuridão atrapalhava a composição das fotos. O que aquele cara fazia no meio daquela penumbra àquela hora? Será que ele planejava roubar aquelas máquinas? Não sabia. Apenas continuou fotografando até chegar perto o suficiente daquele homem. Como quem não quer nada, o estudante foi indo para o lado dele tirando fotos do local.


Enfim adentrara naquela quadra completamente escura. Tentava focar e não conseguia. Foco automático? Nada. Foco manual? Piorou, não enxergava nada no visor para regular ele. As fotos compostas daquele lugar foram apagadas da história, como se não tivessem sido lembranças boas o suficiente para persistirem na memória daquela câmera.


Enfim finalizara a “sessão de fotos” e voltaria para a faculdade quando se deparou com alguém na penumbra. Um homem o observava a cinco passos de distância como um predador que aguarda o momento certo de atacar a presa. O coração disparou e seu corpo se retesou. Como não percebera a chegada daquele estranho? Agora não tinha mais para onde fugir, estava nas mãos de Deus.


Ao perceber que o estudante havia terminado de fotografar, o homem dirigiu-se em direção a ele. Então, o rapaz viu... viu que quem o espreitava era o cidadão que havia se materializado anteriormente na composição de suas fotos. Um senhor de idade, já na casa dos 60 anos. Aposentado, mas não fora da ativa, ele trabalhava de segurança ali naquele local para complementar a renda da família. Como quase 50% da população já aposentada do Brasil, ele não conseguiria se manter apenas com a renda da aposentadoria.


O senhor, marcado pela idade, de vestimenta simples e boné jovial na cabeça (que provavelmente ganhara de alguém), tinha uma prosa simples e contagiante. Ele falava com a espontaneidade e a confiança de um narrador dos contos de fadas que tudo sabe tudo vê (ou viu).


O seu Zé, segurança de carreira há muitos anos, trazia em sua face um semblante sofrido pela vida difícil de trabalhador assalariado e na alma carregava a sensação de felicidade de uma vida com dever cumprido. Um pai que não negou abrigo à filha quando tivera a notícia de que estava grávida. O pai da criança? Desaparecera.


Não teve receio em ser pai pela segunda vez. Carregava consigo a certeza da vida. Cuidou da criança da melhor maneira possível. Não deveria fazer a menina pagar pelos erros de terceiros. Sempre deixou a porta aberta ao pai biológico, que insistia em não reconhecer a paternidade. Foi rindo que seu Zé contou que quando a menina completou 3 anos ele apareceu do nada. Queria a guarda da criança. Entrou com processo e tudo. Adivinha só?


Perdeu, como o fracassado que era. Por isso seu Zé ria à toa. Nunca o impedira de visitar a sua criação, mas ele queria a tomar dos responsáveis, como quem quisesse concertar o passado passando fita adesiva nos cacos que se formaram no caminho da história. O “pai” infeliz sequer paga a pensão. Abandonou a filha como quem não gosta mais de um brinquedo.


Seu Zé, com um boné de aba reta roxo abrigando o cabelo, tinha tranquilidade ao expor sua trajetória. Parecia já a ter contado milhares de vezes. Tinha uma naturalidade e uma facilidade de dar inveja a muitos comunicadores da cidade. Era um senhor com apenas o ensino fundamental completo que trazia ensinamentos que não se encontrava em uma sala de aula.


Aquele cidadão, de base sólida e moral íntegra, cuidava daquele pátio de máquinas como um pai supervisiona um filho no parque de diversões. Estava atento a tudo para que transcorresse tudo nos conformes. Sairia do trabalho apenas às 8 da matina do dia seguinte, depois de 14 horas de trabalho. Ele dizia isso com tanta naturalidade que parecia não enxergar que estava em regime de jornada de trabalho excessiva. Não se incomodava com isso, o trabalho o fazia sentir-se útil e ainda mais vivo do que já estava.


Ironicamente, o rapaz não via a hora de voltar à faculdade para estudar. Voltara para lá aprender, como se já não tivesse visto o suficiente naquele dia, do lado de fora dos limites da faculdade. Na ocasião ele não enxergava com o que se deparara. A verdade é que nem sempre entendemos de imediato o que acontece com a gente. Nos resta apenas esperar. E assim ele voltou à aula, cortando seu Zé no meio de uma frase. Acabara a conversa como ela começara: matutava em sua mente à procura de uma nova pessoa para entrevistar. Nem se dera conta de que havia conseguido uma ali mesmo. Era como não conseguir perceber o seu redor. Talvez fosse a escuridão. Talvez fosse a incerteza. Talvez fosse o talvez.

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